segunda-feira, 3 de março de 2025

Ainda estou aqui


Em 1970, eu trabalhava na Embratel, empresa nacional de telecomunicações responsável, entre outras funções, pela transmissão ao vivo da Copa do Mundo de Futebol. Fiquei estarrecido ao ver amigos torcendo contra a seleção brasileira (que viria a ser brilhantemente campeã) para evitar que a vitória fosse atribuída ao regime militar então vigente.

Ontem, o país entrou em clima de Copa do Mundo, mas desta vez para torcer pelo Oscar do filme "Ainda Estou Aqui", concorrendo como melhor filme estrangeiro, melhor filme e melhor atriz para Fernanda Torres. A torcida se intensificou ainda mais, coincidentemente, no período do Carnaval, quando os brasileiros se despojam de suas preocupações diárias e se entregam à folia.

Para minha surpresa, percebi meu coração dividido. Embora tenha curtido algumas postagens de apoio ao filme e seus protagonistas nas redes sociais, no íntimo, nos recônditos mais profundos do meu ser, eu não desejava a vitória. Esse incômodo me levou a refletir sobre as razões desse sentimento, que me soava mesquinho. Talvez sua origem remonte a 2006, quando a equipe de marketing da campanha de reeleição do presidente Lula, diante do fracasso na realização de promessas eleitorais e dos escândalos que marcaram seu primeiro mandato, optou por criar a narrativa do "nós contra eles". No discurso de comemoração na Avenida Paulista, o presidente recém-reeleito afirmou que o resultado do segundo turno representava "a vitória do andar de baixo contra o andar de cima". Desde então, a sociedade brasileira tornou-se profundamente dividida.

Mas o que o filme e seus realizadores têm a ver com isso? Muito. A obra retrata, com angústia e revolta, os crimes cometidos pelo regime militar. De fato, ninguém tem o direito de dispor da vida de outro ser humano. A vida é o bem maior de um indivíduo e, ao contrário do que afirmou recentemente um ex-ministro do STF e atual integrante do governo, entendo que o direito à vida é absoluto.

No entanto, há uma questão essencial: a totalidade dos profissionais envolvidos na produção do filme são entusiastas da atual conjuntura política do país. O consórcio informal estabelecido entre o Executivo e o Judiciário, em especial o STF, tem perseguido abertamente um espectro específico da política nacional, com medidas arbitrárias. Enquanto criminosos, traficantes e corruptos confessos são libertados, mães de família, idosos e cidadãos sem histórico de violência são presos e condenados com penas desproporcionais.

Além disso, há um grupo de fanáticos que, talvez por desordem mental, ainda bradam "sem anistia", buscando legitimar injustiças flagrantes. Provavelmente, temem que uma eventual anistia concedida aos envolvidos nos eventos de 8 de janeiro leve, em sua esteira, à reabilitação política da maior liderança da Direita no país, atualmente impedida de disputar eleições por uma decisão no mínimo controversa.

As arbitrariedades são tão gritantes que seria natural esperar que os artistas que, com talento e zelo, registraram seu repúdio ao regime iniciado em 1964, tivessem a mesma disposição para denunciar as vítimas das perseguições políticas de 8 de janeiro de 2023 e dos acontecimentos subsequentes. No entanto, por conveniência ideológica ou interesse econômico, optaram por legitimar este que tem sido um dos períodos mais sombrios da história recente do país.

Diante de tudo isso, justifica-se minha torcida silenciosa pelo fracasso do Brasil no Oscar? Certamente não. Mas agora, após essa reflexão, compreendo a origem do sentimento que habitava os recônditos mais profundos de minha mente e coração. E compreender suas causas talvez seja o primeiro passo para controlá-lo.

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