
IBM System/3
Sempre tive verdadeiro fascínio e respeito pela inteligência humana. Claro que outros valores despertam sempre admiração, tais como beleza, prosperidade, honestidade, coerência no viver, estoicismo, resiliência etc, mas a "faculdade de conhecer, compreender, raciocinar, pensar e interpretar" as mais diversas situações, é o que faz a principal distinção entre os humanos e outros animais.
Aos vinte anos tive meu primeiro contato com um computador (meu neto Arthur com apenas um ano, já brinca com o notebook do seu pai). Era uma monstruosa máquina IBM 1130, pertencente à Universidade Federal do Ceará. O sistema completo inclusive impressora, pesando algumas toneladas e instalado numa sala com temperatura controlada, tinha piso falso para proteger a grande quantidade de cabos responsáveis pela interligação entre os diversos componentes.
Quis o destino que pouco tempo depois eu fosse atuar como um profissional muito próximo dessas máquinas, quando aprovado em concurso da IBM e depois de duradouro curso de treinamento, tornei-me analista de sistemas de computação.
À época a IBM estava comercializando, em nível mundial, um computador de "pequeno" porte (IBM/3) com linguagem de programação própria (RPG), voltado essencialmente para atender às diversas demandas administrativas de empresas pequenas (contabilidade, pagamento de pessoal, faturamento, controle de estoque, emissão de faturas etc), e tendo como especialidade a geração de relatórios gerenciais.
Por conveniência da empresa tornei-me especialista nesta família de máquinas. Desenvolvia, instalava e dava manutenção nos sistemas que "rodavam" nos equipamentos instalados no Ceará, Piauí e Maranhão, sem prejuízo para eventual atendimento em equipamentos instalados em Pernambuco (acho que aconteceu apenas um par de vezes).
Eu era considerado um bom profissional. Conhecia bem o objeto do meu trabalho.
O Banco do Estado do Piauí tinha um desses equipamentos instalados na sua sede em Teresina, que processava os sistemas de conta corrente, pagamento de pessoal, contabilidade e cobrança/desconto. O aumento dos volumes a serem processados exigiu a contratação de uma expansão do equipamento, aumentando a sua capacidade de armazenamento em disco. Como habitualmente, fui escalado pelo gerente Francisco de Paula Rodrigues Sobrinho para executar a tarefa. Francisco (codinome Chico Nome Feio), era uma estrela da empresa no Brasil. Sua inteligência beirava a genialidade. Havia sido responsável pelo desenvolvimento e instalação do sistema da bolsa de valores em São Paulo, tinha ganho o prêmio internacional de analista do ano (entre mais de duzentos mil profissionais da empresa no mundo inteiro), e a IBM o queria morando nos Estados Unidos, trabalhando em um dos seus centros de desenvolvimento. Nessa oportunidade ele pediu demissão porque queria vir morar em Fortaleza. A empresa não teve outra alternativa senão mandá-lo para a filial local como gerente de análise e pouco tempo depois gerente da filial.
Viajei para Teresina numa quarta-feira à noite, com o propósito de "botar no ar" a expansão de disco no dia seguinte e voltar na sexta para estar em casa no final de semana. Não aconteceu. Trabalhei a quinta feira toda, a sexta, o sábado e ao longo do domingo recebi uma ligação de Chico. Contei-lhe que estava com grande dificuldade, que já tinha tentado tudo o que eu conhecia, o que os manuais indicavam e até havia ligado para o suporte no Rio de Janeiro. Nada parecia funcionar. Ele me pediu para apanhá-lo no voo que chegava em Teresina por volta de uma ou duas horas da madrugada da segunda feira. "Meu Deus", pensei. "O que ele vem fazer aqui? Sequer conhece a máquina. O craque nela sou eu"! Evidente que na hora prevista eu estava no aeroporto. Recebi-o e quando disse ao motorista do taxi que se dirigisse para o então Hotel Piauí (posteriormente Luxor Hotel) ele corrigiu: "vamos para o banco do estado". Eu tinha autorização para entrar a qualquer hora nas dependências do centro de processamento de dados, e não era inusitado o tráfego de pessoas naquela área. É comum nesse ramo equipes trabalharem ao longo da noite.
Entramos na sala do computador e ele rapidamente sentou na cadeira à frente do painel. Pediu-me: "Nilo, abre aí o console". Cumpri a ordem, não sem pensar: "o cara não sabe sequer abrir o console do computador!". Ele começou a digitar velozmente comandos no teclado, alguns davam erro, ele voltava a digitar outros comandos. Parte eu conhecia, outros não. Vez ou outra solicitava alguma informação. Por volta das quatro da madrugada, pediu-me para botar o formulário contínuo e ligar a impressora. Cumprida a tarefa, o sistema não reconhecia o discão. Novas tentativas, novos comandos, mais trabalho, a que eu assistia calado. Confesso que internamente eu gozava com aquela situação. Pouco antes das sete da manhã ele desligou o sistema. Pensei: "desistiu!". Levantou-se da cadeira, apontou-a para mim e ordenou: "ligue a máquina". Obedeci. "Agora, gere qualquer relatório". A rotina mais complicada que eu conhecia era a que identificávamos como "valor por extenso". Era uma complicada rotina na qual o operador digitava um valor qualquer - R$ 12,73 por exemplo - e o equipamento imprimia na fatura o valor por extenso - "doze reais e setenta e três centavos". Mais do que identificar o valor, que já era extremamente complicado, tinha que ser impresso com continuidade, no espaço certo etc. Tasquei um número bem complicado e corri para a impressora. Impressão perfeita. O sistema funcionando como uma orquestra bem treinada. Digitei outro valor, e outro e outro. Tudo certo. Desligamos o computador e quando saíamos da sala ele bateu amigavelmente no meu ombro e disse: "rapaz, tu tem que aprender a mexer com essa máquina". Suprema humilhação!
Era algo em torno de sete horas da manhã. Descíamos as escadas, quando encontramos o presidente do Banco. Era um certo dr. Júlio, funcionário de carreira do Banco do Nordeste e cedido para o Governo do Estado do Piauí para presidir o banco estadual. O presidente dirigindo-se ao meu gerente disse: "Chico, essas máquinas de vocês não funcionam". Juro que jamais presenciei em minha vida um cotoco tão bem aplicado. Nem no tempo em que eu era criança. Do alto dos seus quase um metro e noventa, com seu longo dedo médio, levantou esse dedo com os outros dedos fechados e sem dar uma palavra deu-lhe as costas e fomos tomar o café da manhã no Hotel Piaui.
Deus o tenha, Grande Chico!
Muito bom seu artigo! Experiencia interessante contada de maneira fácil e cativante. Parabéns!
ResponderExcluirDr. Nilo , na posição de filho e em nome da família de "Chico Nome Feio" rsrsrs , gostaria de externar nosso agradecimento pelo reconhecimento, admiração e deferência aquele que muito nos orgulha. Todo o nosso carinho ao Senhor 🙏🫶🤝
ResponderExcluirDr. Nilo, estamos todos os filhos com o coração na mão ao ler seu artigo. Este tipo de emoção não tem preço, o valor é inestimável. Infelizmente ele foi muito cedo e tenho certeza que além de fazer muito falta aos filhos e familiares o mundo dos computadores perdeu um gênio. Agradecemos sua homenagem e suas palavras. Este era nosso pai, o trabalho, conhecimento e comprometimento acima de tudo. Lembro-me das viagens que ele fazia periodicamente a estes estados, agora realmente entendi o motivo. Abraços, saúde felicidades
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