terça-feira, 24 de junho de 2025

O Umbigo Enterrado


O cabra pode até rodar o mundo todinho. Já andei no Shinkansen, o trem-bala de Tóquio para Yokohama no Japão, já me perdi nos becos do bairro de Alfama, em Lisboa, impressionei-me com as luzes da Times Square de Nova York, encantei-me com os cafés de Paris e com o cruzeiro de navio de Helsinque para Estocolmo. Apesar de ter morado quase sete anos nos Estados Unidos, nunca aprendi outros sotaques, outros modos, outros jeitos de dizer “bom dia”. Nunca esqueci a terra onde enterrei meu umbigo.

Essa história de enterrar o umbigo é mais que crendice de parteira. É pacto. Raiz invisível que a gente carrega no peito, feito cordão que nunca foi cortado de verdade. Quem nasceu em chão batido de terra quente, sabe: o mundo pode ser bonito, mas só um lugar tem o cheiro certo de quando éramos pequenos.

Eu conheço gente que virou doutor, político, autoridade, e mesmo assim volta todo mês de agosto pra renovar suas promessas com São Raimundo. Gente que, de terno e gravata, ainda sonha com o barulho da chuva caindo no telhado. Que carrega retrato amarelado no bolso ou na memória, da roda de conversa na pracinha da cidade, dos encontros debaixo da castanhola. 

Porque não adianta: o chão de origem não se apaga com carimbo no passaporte. E não é só saudade. É pertencimento. É saber de onde se veio pra não se perder por aí. É lembrar que, por mais que o mundo se abra, há um lugar que é só da gente, com seu silêncio particular, com suas vozes e músicas antigas ecoando dentro do peito.

E quando perguntam de onde a gente é, mesmo morando a léguas de distância, a resposta vem certeira, com um orgulho que quase treme na boca:

“Sou de Várzea Alegre, onde meu umbigo tá enterrado até hoje.”

quarta-feira, 18 de junho de 2025

"¿Por qué no te callas?"


A frase “¿Por qué no te callas?” ("Por que não te calas?") tornou-se mundialmente famosa após ser pronunciada pelo então Rei da Espanha, Juan Carlos I, durante a 17ª Cúpula Ibero-Americana, realizada em Santiago, Chile, no dia 10 de novembro de 2007.

O episódio ocorreu quando o rei se dirigiu ao então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que, durante sua fala, interrompia insistentemente o primeiro-ministro da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero. Chávez, fiel ao seu estilo provocador, acusava repetidamente o ex-primeiro-ministro espanhol, José María Aznar, de ser um “fascista”, referindo-se a ele com termos ofensivos.

Zapatero, apesar de ser de partido oposto a Aznar, buscou manter o tom diplomático. Em sua fala, defendeu o ex-premiê, lembrando que, embora tivessem divergências profundas, Aznar havia sido eleito democraticamente e merecia respeito como ex-chefe de governo. Mesmo assim, Chávez seguia interrompendo, insistente e desrespeitoso. Foi nesse momento que o rei Juan Carlos, visivelmente irritado, perdeu a paciência e exclamou — fora do microfone, mas claramente captado pelas câmeras —: “¿Por qué no te callas?”

A frase correu o mundo. O que mais impressionou foi o fato de um monarca — tradicional símbolo de moderação e diplomacia — reagir com tanta veemência em público. Para muitos, aquela foi uma espécie de "freada simbólica" na verborragia de Hugo Chávez, frequentemente criticado por seu estilo autoritário, provocador e sua retórica agressiva.

O episódio também evidenciou o contraste entre os líderes populistas da esquerda latino-americana e os representantes das democracias liberais europeias, num embate que ia além do protocolo diplomático.

Anos depois, um momento curioso (e constrangedor) fez ecoar essa lembrança. Em 17 de junho, durante uma cúpula do G7 em Kananaskis, no Canadá — que reúne os sete países mais industrializados do mundo —, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, convidado ao encontro, protagonizou uma cena embaraçosa.

Logo no início da reunião, o primeiro-ministro do Canadá, Mark Carney, deu início aos trabalhos explicando que “nós vamos esperar um minuto pela tradução”. Pouco depois, perguntou: “Funcionou?” Lula, então, gritou: “Tem que falar aí!”, interrompendo o anfitrião. Carney, ainda paciente, perguntou: “Posso ir?”, querendo saber se podia começar seu discurso. Foi interrompido mais uma vez por Lula, que insistia: “Tem que falar aí, a intérprete tem que falar. Não está saindo (o som).” E ainda exigiu: “Manda falar qualquer coisa pra ver se o som sai aqui.” A cena causou risos de deboche entre os líderes mundiais presentes.

Naquele momento, cofiando a barba e tossindo discretamente (não, não "me engasguei comigo mesmo"), não pude evitar um pensamento irônico: se Sua Majestade estivesse presente, talvez tivesse sacado novamente a sua célebre exclamação — “¿Por qué no te callas?”

segunda-feira, 16 de junho de 2025

"Assim não se pode trabalhar!"


Durante o governo do presidente Ernesto Geisel (1974–1979), o Brasil enfrentava os efeitos colaterais de uma crise energética global e de uma inflação galopante que ameaçava a estabilidade econômica do país. Para tentar conter os danos e evitar medidas ainda mais drásticas, o então Ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, propôs uma solução criativa — e extremamente impopular: a criação do Certificado de Recolhimento Restituível (CRR), um tributo extra embutido no preço da gasolina, que passou a ser conhecido informalmente como "simoneta".

A alcunha era uma ironia amarga: uma alusão às “polonetas”, títulos públicos emitidos pelo governo da Polônia que o Brasil havia adquirido — e dos quais jamais conseguiu reaver o valor investido. A “simoneta”, portanto, carregava no nome não apenas o peso da medida fiscal, mas também o descrédito simbólico de experiências anteriores mal-sucedidas.

Coube ao senador Virgílio Távora, vice-líder do governo para assuntos econômicos no Senado, a ingrata missão de defender o novo imposto. Com sua habitual seriedade e competência, Virgílio preparou-se para justificar a medida em plenário: falou da crise internacional do petróleo, da necessidade de manter a economia girando, de conter a inflação e de evitar o temido racionamento de combustíveis. Seus argumentos, expostos com precisão na tribuna do Senado, buscavam enquadrar a “simoneta” como um remédio amargo, porém necessário.

No entanto, minutos após o discurso, a imprensa noticiava que o próprio presidente Geisel havia determinado o cancelamento da implementação do imposto, jogando por terra toda a fundamentação apresentada. Ao deixar o plenário e caminhar para seu gabinete, Virgílio teria desabafado com ironia contida e frustração sincera: "Assim não se pode trabalhar!"

E por que recordar esse episódio remoto, soterrado nas memórias do regime militar? Porque ele encontra eco em nossos dias. Ao assistir a recentes declarações do presidente Lula — especialmente aquelas que soam como “sincericídios” capazes de desautorizar toda a estratégia de comunicação governamental —, é possível imaginar Sidônio Palmeira, o atual ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), encarregado de reverter a curva de queda da popularidade do governo, repetindo em silêncio o lamento de Virgílio Távora: "Assim não se pode trabalhar!"

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Não faz sentido falar em fuga


A acusação de que o Coronel Mauro Cid estaria planejando fugir do Brasil não se sustenta diante dos fatos. Desde que firmou seu acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal, Cid tem demonstrado plena disposição em colaborar com as investigações — inclusive entregando documentos, senhas, agendas e testemunhos que se tornaram peças-chave nos inquéritos em curso. Em troca dessa colaboração, ele obteve uma série de benefícios legais, todos nas previsões da legislação penal brasileira.

Entre os benefícios pactuados, estão o perdão judicial ou a aplicação de pena branda (inferior a dois anos), a restituição de bens lícitos, a inclusão no programa de proteção à testemunha, a liberdade provisória com uso de tornozeleira eletrônica, além da extensão de garantias legais a seus familiares. Em outras palavras, trata-se de alguém que está sob vigilância, com compromissos formais firmados com o Judiciário e cujos interesses dependem da continuidade de sua cooperação com o Estado. Nenhum desses elementos é compatível com o comportamento de alguém em fuga.

A solicitação e obtenção da cidadania portuguesa, por sua vez, não pode ser confundida com uma tentativa de evasão. O processo foi iniciado em janeiro de 2023, antes mesmo da formalização do acordo de delação, e foi fundamentado no fato de que sua esposa e suas filhas já possuem essa nacionalidade. O pedido seguiu os trâmites legais internacionais, sem subterfúgios ou ocultações. Receber um documento de identidade de outro país, ainda mais quando vinculado à família, não configura crime nem infração alguma — e está muito longe de ser prova de intenção de fuga.

Em resumo, a ideia de que Mauro Cid planeja fugir é incompatível com a realidade de sua condição legal. Ele tem mais a perder do que a ganhar com qualquer atitude que possa violar o acordo de delação, inclusive sua liberdade, sua carreira e os benefícios estendidos à própria família.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

“Quer ser meu vice em 2026?”


Durante a oitiva dos réus da Ação Penal 2668, que trata dos eventos de 8 de janeiro e da suposta tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente Jair Bolsonaro surpreendeu ao se dirigir ao ministro Alexandre de Moraes com a pergunta: “Quer ser meu vice em 2026?”. A frase, proferida em tom informal e inesperado, dividiu opiniões até mesmo entre seus seguidores — alguns criticaram a leveza diante da gravidade do processo; outros não compreenderam o real alcance da provocação. Contudo, no meu modesto modo de ver, o episódio está longe de ser um ato impensado ou inconsequente: ele carrega uma ironia estratégica e mensagens políticas claras.

Primeiro, a frase é uma crítica velada, mas mordaz, à falta de imparcialidade do ministro Alexandre de Moraes, que acumula as funções de julgador e parte interessada em diversas frentes que envolvem Bolsonaro e seus aliados. Ao convidá-lo para ser seu “vice”, o ex-presidente inverte os papéis e sugere que Moraes, na verdade, atua como opositor político, e não como magistrado isento. É uma acusação envolta em sarcasmo, mas extremamente grave: a de que o ministro, em vez de zelar pela legalidade, atua com viés ideológico, interferindo no jogo democrático com a toga.

Segundo, a frase reafirma — com todas as letras — que Bolsonaro não está fora do jogo político. Apesar de estar momentaneamente inelegível por decisão do TSE, o ex-presidente insinua que estará sim na disputa de 2026, direta ou indiretamente. O “convite” a Moraes, portanto, funciona como um recado duplo: ao tribunal, que não conseguiu calá-lo, e ao eleitorado, que ainda o vê como liderança de oposição viva e atuante. É a forma bolsonarista de dizer: “Ainda estou aqui, e continuo incomodando.”

É natural que o gesto tenha causado desconforto — afinal, trata-se de um julgamento. Mas ignorar a carga simbólica e política da fala seria um erro. Bolsonaro, com uma única frase, transformou a audiência em palco e lembrou aos seus adversários que quem provoca também domina narrativas. Resta saber se o Supremo saberá lidar com isso sem perder ainda mais a legitimidade diante da opinião pública.