
Um mandato eletivo bem exercido é algo absolutamente inexplicável. Tem alguma coisa de mágico, transcendental. A força do voto popular, a energia que vem da urna, como que transforma o cidadão comum, toca sua alma, eleva seu espírito. Isto dito, multiplique potencialmente esses sentimentos se no período legislativo há a oportunidade de participar de uma Assembléia Constituinte.
Dispõe o caput do artigo 25 da Constituição Federal de 1988 que “os estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. Esse dispositivo autorizava a instalação das Assembléias Estaduais Constituintes, tornando Deputados Constituintes aqueles eleitos em outubro de 1986. Para ter-se uma idéia da importância e da majestade dessa oportunidade, o Estado do Ceará ao longo de toda sua história só teve 9 (nove) Constituições.
No início de 1989 foi instalada a Constituinte com a seguinte formação eleita para dirigi-la: Antônio Câmara, Presidente – Antônio dos Santos, 1o Vice-Presidente, – Macário de Brito, 2o Vice-Presidente, – Narcélio Limaverde, 1o Secretário – Ilário Marques, 2o Secretário – Geraldo Azevedo, 3º Secretário – Elmo Moreno, 4º Secretário – Everardo Silveira, Relator. Os trabalhos transcorreram ao longo do ano de 1989, quando invariavelmente as sessões entravam noite a dentro e não raro invadiam a madrugada. Esse período foi extremamente educativo. É a perfeita ecologia para crescer-se como ser humano. Ali aprende-se a cultivar a humildade, a tolerância, a defender com firmeza suas convicções mas saber trabalhar pelo possível, conciliar quando necessário e fundamentalmente pedir ajuda externa estimulando a inteligência coletiva da sociedade civil organizada, para não ser apenas um observador.
Tentei fazer o meu melhor, seja estudando muito durante esse momento, seja recorrendo aos diversos segmentos sociais, alguns informais outros representantes de colegiados, entidades de classe, profissionais liberais, sindicatos etc. Não raras vezes fomos procurados por esses grupamentos e sempre constituindo-se num aprendizado valoroso. Havia então um duplo trabalho: num primeiro momento de ouvir e filtrar as propostas encaminhadas por esses segmentos e num segundo momento convencer aos demais pares a aprovar aquelas emendas que a nosso juízo mereciam constar na Lei Maior do Estado.
A minha atuação tinha um complicador a mais. Eu havia sido até aquele momento o líder do maior partido de oposição - o PDS - e desenvolvido um trabalho de críticas bastante cáusticas ao Governo Tasso. No entanto, entendia que aquele era um novo momento. Desenhava-se um conjunto de normas para reger o Estado permanentemente, independente de quem exercesse o poder. Havia de conceber um novo comportamento em plenário.
O líder do Governo na Constituinte era o Deputado Alexandre Figueiredo. Indivíduo inteligente, com boa formação cultural e que o americano chamaria de "easygoing personality". Estabelecemos uma convivência amigável e tentamos conduzir com o maior profissionalismo e a maior responsabilidade possível. Recebíamos as demandas dos colegas, daqueles segmentos sociais a que me referi anteriormente, e nos reuníamos pelo menos duas vezes na semana. Na oportunidade apresentávamos as emendas do interesse daqueles que nos haviam procurado. Era uma espécie de "encontro de contas". Emenda a emenda, negociávamos. Evidente que parte não tinha acordo. Nesses casos a disputa era no voto, em plenário. Mesmo para aquelas negociadas, o compromisso era defender dentro das bancadas. O que geralmente resultava em sucesso.
Essas negociações não aconteceram apenas com a liderança do Governo. Uma das negociações mais penosas, que exigiu muito de paciência e espírito conciliador, foi a que se deu com os representantes da esquerda na Constituinte. Eles eram pouco expressivos numericamente (menos de 10% do total), mas extremamente representativos do ponto de vista de participação. Discutir o Capítulo VIII Do Meio Ambiente com os Deputados João Alfredo, Ilário Marques, Paulo Quezado e Edson Silva foi difícil. Acordamos no possível e no restante exercemos no voto em plenário o direito da maioria. Nesse Capítulo específico houve uma pressão externa muito grande por parte de direção de conselhos de profissionais liberais, verdadeiros "lobbies", mormente da Associação dos Geógrafos do Ceará.
Um outro momento até certo ponto constrangedor, foi a audiência em meu gabinete recebendo três Desembargadores representando o Tribunal de Justiça. Havia uma emenda de minha autoria que acrescia o número de Membros daquele colegiado de 15 para 21. O Tribunal era contra, ponderaram. Trouxeram dados estatísticos que apontavam para a desnecessidade desse incremento, pedindo-me que retirasse a emenda. Não eram as informações que eu tinha. Processos acumulavam-se naquele Poder. Fui polido o suficiente e prometi analisar a questão. Claro que não a retirei, levei-a a voto e ela transformou-se no Art. 107 da Constituição Estadual. Depois de promulgado o dispositivo legal, o Tribunal de Justiça ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF, conseguindo suspender por medida cautelar a expressão: “vinte e um”, deferida pelo STF na ADIn nº 251-1 (que nunca foi julgada no mérito).
Eram diárias as solicitações advindas das mais diversas direções. Eu apresentei mais de duas centenas de emendas e algumas delas deram-me muito prazer. Lembro com respeito da humildade com que o ex-Governador Manoel de Castro pediu-me para apresentar uma emenda que efetivasse os Procuradores do Conselho de Contas dos Municípios. Naquela oportunidade era cargo de confiança, de livre nomeação, demissível "ad nutun". Encaminhei a emenda devida que transformou-se no Art. 16 das Disposições Transitórias, com o seguinte teor: "Os atuais ocupantes dos cargos de Procurador junto ao Conselho de Contas dos Municípios neles permanecerão até quando se aposentarem, e passarão a se denominar Procuradores de Justiça, integrantes do Ministério Público Estadual."
Num determinado momento fui procurado pelo Deputado José Bezerra que me pedia para estudar uma forma de efetivar nos quadros da Assembléia funcionários do seu gabinete, oriundos da Administração Direta e Indireta do Estado. Ponderei que seria impossível justificar apenas para seu gabinete, e mesmo difícil aprovar para os funcionários lotados na Assembléia. A estratégia era estender para todo o Estado. E assim foi feito. Encaminhei a emenda que se transformou no famoso Art. 30. Infelizmente o Governo ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade conseguindo suspensão por medida cautelar deferida pelo STF na ADIn nº 289-9 (que nunca foi julgada no mérito).
Tivemos uma presença constante também no TÍTULO VII Da Tributação e do Orçamento. De um lado o interesse do Governo, representado pelo Secretário da Fazenda Lima Matos (por diversas vezes recebi em meu gabinete, a seu pedido, o talentoso Auditor Fiscal João Alfredo Montenegro Franco). Com João Alfredo, discutíamos com transparência o que era possível apoiar e o que a nossa bancada rejeitaria. Ainda tinha que conciliar com os interesses das ditas classes produtoras, representadas pela FACIC. A pedido do então Senador José Afonso Sancho, recebi do então Presidente daquela entidade - Raimundo Viana - documento defendendo as posições da Federação.
São inúmeras lembranças que preencheriam um livro inteiro. Lembranças carinhosas, saudade dos companheiros e de todos os que participaram daquela construção. Momentos de grandes alegrias e sensação do dever cumprido com o melhor da minha inteligência. Apenas uma pequena frustração que não deslustra em nada o trabalho realizado. Eu acompanhava, através de Deputados amigos, o desenrolar dos trabalhos em diversas Assembléias, especialmente nos Estados de Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A informação que eu tinha, e passei para o colegiado, era que a quase totalidade dos Estados ia criar Municípios através das Disposições Transitórias. E fazia sentido. Naquele momento, a distribuição do FPM repercutia nacionalmente e não por Estado como é agora. A quase totalidade dos Estados brasileiros tirou vantagem dessa forma de distribuição, criando uma grande quantidade de novos Municípios, e se nós não o fizemos, penso, foi por desencontros paroquiais menores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário