quinta-feira, 25 de abril de 2024

O Passaporte de Samuca



Os meus amigos e conhecidos conhecem também meu filho caçula Samuel, o Samuca. É um indivíduo afável, sereno, e seu retardo mental e ausência de verbalização não o impedem de ser apreciador de um barzinho com música ao vivo que lhe absorve por horas seguidas e estampar quase sempre um doce sorriso no rosto.

No final da década de 1990 Samuel morou no Condado de Palm Beach, na Flórida, submetendo-se a tratamento de saúde e frequentando a escola regular William T. Dwyer High School.

Nesse período de pouco mais de 3 anos, tínhamos o hábito de, pelo menos um fim de semana por mês, irmos ao complexo de entretenimento de Disneyworld (Walt Disney World Flórida). Tínhamos o Passe Anual, cujo preço era bastante razoável para moradores naquele estado.

Apesar de ter morado por mais de 6 anos naquele país e das agradáveis lembranças que imagino pairam ainda na sua memória, já lá se vão uns bons 22 anos sem que ele tenha tido a oportunidade de voltar aos Estados Unidos. Foi pensando nisso que resolvi renovar seu Passaporte para um eventual passeio naquele gigante do norte.

Selecionei Identidade, CPF, laudo oficial do Governo do Estado (antigo IPEC) assinado por 3 médicos, laudo da médica Fátima Dourado, provavelmente a maior autoridade em autismo do Estado e uma das maiores do país e o Documento de Interdição do Poder Judiciário, da 7ª Vara da Família de Fortaleza, assinado pela então titular, Juíza de Direito Shirley Maria Viana Crispino Leite. "Armado até os dentes" com documentos e com horário adredemente agendado no Posto da Polícia Federal do Shopping Iguatemi, imaginava que seria "a piece of cake" (para utilizar uma expressão usual em inglês para uma coisa muito fácil) ou a versão mais livre em português, "mamão com açúcar", a renovação do documento do meu filho. Mera ilusão!

Os documentos não foram suficientes. Samuel teria que ter Título de Eleitor e Certificado de Alistamento Militar. Confesso que no momento em que fui informado dessas exigências, veio-me um incontrolável desejo de rir. Rir muito! Imaginei meu Samuca exercendo seu dever cívico de escolher seus governantes (em vez de deliciar-se com o passeio de trenzinho da alegria que percorre os corredores do mesmo Iguatemi) ou desmontando e montando um fuzil (sem tempo para ir participar da roda-de-samba do almoço do sábado no Restaurante Floresta).

Regras são regras. Cumpre-nos segui-las sem prejuízo para o direito de criticá-las. A complexa teia de legislação e regulamentação que envolve o Brasil tem sido frequentemente criticada como um obstáculo ao desenvolvimento do país. Com milhares de leis, portarias, decretos, resoluções e outros instrumentos normativos, a burocracia brasileira pode parecer uma barreira intransponível para o progresso. Essa densa rede de regulamentações cria um ambiente operacional desafiador para empresas, organizações e até mesmo para os cidadãos comuns.

É fundamental que o Brasil enfrente o desafio de simplificar sua burocracia e promover uma regulamentação mais eficiente e transparente. Somente assim o país poderá se alinhar verdadeiramente aos padrões dos países desenvolvidos.

Não me custou muito fazer agendamento por telefone no Posto do TRE no Shopping RioMar para 9:45h de ontem (quarta-feira). Antes disso, madrugar nas dependências do Ginásio Paulo Sarasate onde funciona uma Junta de Alistamento Militar (acho que esse é o nome) de onde saí menos de uma hora depois com o Certificado de Alistamento Militar, um pomposo papel com o timbre do Ministério da Defesa. Aqui cabe uma observação por dever de justiça: muito obrigado à senhora Salênia, servidora daquele órgão que tudo fez para tornar minha vida menos complicada, chegando inclusive a ligar para pessoa amiga na Polícia Federal com o objetivo único de ajudar um contribuinte.

O espaço do TRE no Shopping, dedicado às pessoas que buscam regularizar sua situação junto à Justiça Eleitoral, é um enorme salão com dezenas (eu arriscaria dizer centenas) pequenas mesinhas com computadores e máquinas acopladas para fotografar o potencial eleitor e colher suas digitais. Tudo muito moderno. Ali encontrei centenas de pessoas, a maioria jovens, que certamente estavam em busca do Título para exercer seu primeiro voto. É uma algazarra organizada. Meia hora depois eis que o cidadão Samuel Thomaz está devidamente credenciado para exercer seu legítimo direito, dever cívico, de escolher nas urnas aqueles que estabelecerão as políticas públicas no município, estado e país.

Antes de concluir o processo, fui informado por servidor do Tribunal que devo endereçar um requerimento à Zona Eleitoral, com a juntada de documentos que comprovem a incapacidade do meu filho para exercer esse "dever cívico", sendo então dispensado da obrigatoriedade do voto, sob pena de ter seu Título cancelado no futuro. Eu me questionei silente: por que no momento da confecção do documento já não se cadastra um símbolo indicando essa condição?

Não termina aqui a "via sacra" da renovação do Passaporte de Samuca. Ainda vamos mais uma vez encarar o Posto da Polícia Federal. Seja o que Deus quiser.

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